A importância da literacia física no futebol de formação


“É preciso dizer que há declínio enorme nas últimas décadas do ponto de vista de tempo e espaço para brincar. Para ter uma ideia, 70% das crianças em Portugal brincam menos de uma hora por dia. As crianças hoje têm menos tempo para brincar do que os prisioneiros nas prisões, que têm mais tempo de ócio fora das celas. Tempo, na infância, passou a ser um treino muito organizado, muito estruturado, muito limitado. Temos currículos escolares muito extensos e intensos, e a criança passa muito tempo sentada e quieta, sem mexer o corpo. É uma criança sedentária por princípio, devido ao facto de se terem criado agendas muito organizadas” (Neto, C., 2017 em entrevista à Tribuna Expresso por Mariana Cabral).

Antes de mais, importa começar por definir o conceito de literacia física. De acordo com (Onofre, 2017) para Whitehead (2014) a literacia física é a motivação, confiança, competência física, conhecimento, compreensão do valor e o estar comprometido com um estilo de vida saudável. Acrescenta-se no conceito de literacia física a capacidade de o indivíduo compreender todos os aspetos do envolvimento físico, antecipando as necessidades de movimento e as possibilidades de resposta apropriada às mesmas, com inteligência e imaginação. Para este efeito, o desafio da formação vai muito além da aprendizagem das atividades físicas e desportivas, envolvendo a aprendizagem de destrezas de movimento que permitam a plena integração nos envolvimentos geográficos e na exploração das suas possibilidades de formação geral, nomeadamente no domínio de uma convivência ecológica com esses envolvimentos. Por outro lado, implica a necessidade de uma preparação cognitiva para a autonomia na identificação de problemas próprios da relação entre o indivíduo e o ambiente e na construção de estratégias, eventualmente criativas, para a sua superação.

Analisando de forma mais atenta o conceito supramencionado, fará então sentido nos escalões mais baixos da formação (Petizes, Traquinas e até Benjamins) os treinadores apresentarem preocupações desmedidas com os conceitos táticos inerentes à modalidade? Será que é mais importante que um atleta com 5 anos de idade e que jogue futebol saiba fazer uma Cobertura Defensiva e tenha consciência de colocar os apoios de forma a levar o adversário para o pé mais fraco ou para a linha lateral?
Como tal, seguindo esta lógica de raciocínio, considero fundamental nos escalões mais baixos da formação dotar os atletas de habilidades motoras básicas, ou como descrito na literatura, desenvolver os movimentos fundamentais básicos. Estes movimentos como o correr, saltar, lançar, agarrar, chutar, trepar, entre outras, torná-los-á mais capacitados a nível motor e cognitivo para responder de forma adequada a qualquer situação a que sejam expostos posteriormente. Por exemplo, um atleta que nunca teve qualquer contacto com estes movimentos fundamentais básicos, não apresenta qualquer repertório ao nível do agarrar, do chutar ou do lançar, será que terá sucesso nas respostas que terá que dar se for guarda-redes no futebol?

De forma a corroborar com esta ideia, a Canadian Sports for Life apresenta um modelo orientador da literacia física, dividido em 7 estágios/fases/etapas e que o ajudará a entender melhor este conceito, bem como os seus princípios e estratégias de implementação.

  • Active Start ou Início ativo (0-6 anos) – Aprender os movimentos fundamentais e relacioná-los com as atividades lúdicas.
  • FUNdamentals ou Fase Fundamental (6-8/9 anos) – Aprender os movimentos fundamentais e construir globalmente as capacidades motoras.
  • Learn to Train ou Aprender a Treinar (8/9-12 anos) – Salientar as técnicas desportivas.
  • Train to Train ou Treinar para Treinar (11/12-15/16 anos) – Construir uma base aeróbia, desenvolver a velocidade e a força no final do estágio. Desenvolver e consolidar ainda mais as habilidades específicas do desporto.
  • Train to Compete ou Treinar para Competir (15/16-21/23 anos) – Otimizar o mecanismo e aprender a competir.
  • Train to Win ou Treinar para Ganhar (18/19-… anos) – O principal objetivo é a performance e a vitória.
  • Active for life ou Ativo para a vida (em qualquer idade) – Uma transição suave do desenvolvimento da atividade física ao longo da vida e da alfabetização física, ou do caminho do pódio para a competitividade pela vida, adequada para a vida ou compromissos como líder do desporto e atividade física.

Portanto, antes de queremos tornar um atleta no Cristiano Ronaldo aos 5 anos de idade, vamos olhar antes para o essencial e para o básico. Vamos proporcionar-lhe uma formação rica em habilidades que lhe permitam responder com sucesso aos desafios futuros, pois segundo Whitehead (2007) um indivíduo fisicamente culto movimenta-se com determinação, economia e confiança numa grande variedade de situações fisicamente desafiantes. Esta alusão sublinha a importância de uma formação que não é especializada, mas antes eclética, abrangendo não uma ou duas, mas um vasto leque de formas de atividade física.

Bibliografia:

Cabral, M. (2017). Uma entrevista para pais, dirigentes e treinadores. “Os atletas brincaram muito na rua e foram felizes, não se fabricaram em laboratório” (pp. 1–13). pp. 1–13. Tribuna Expresso in https://tribunaexpresso.pt/entrevistas-tribuna/2017-03-01-Uma-entrevista-para-pais-dirigentes-e-treinadores.-Os-atletas-brincaram-muito-na-rua-e-foram-felizes-nao-se-fabricaram-em-laboratorio

Onofre, M. (2017). A Qualidade da Educação Física como Essência da Promoção de uma Cidadania Ativa e Saudável. Retos, 31, 328–333.

1 Comentário

  1. Parabéns pelo artigo. Muito bom!

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