Nota prévia: este texto tem origem numa autocrítica que fiz há algum tempo e que tem permitido melhorar a minha intervenção, enquanto treinador, nas sessões de treino e nos jogos. Por vezes, cometemos erros inconscientemente que podemos corrigir quando tomamos consciência da forma e da frequência do erro. A evolução acontece pela constante superação do erro.
A expressão “treinador-playstation” é talvez uma das mais recentes da gíria futebolística. Basicamente, caracteriza o treinador que comanda verbalmente as ações dos jogadores, numa analogia com o controlo que é exercido, através de comando manual, nos jogos de futebol para consola ou computador.
Quantos de nós não assistimos ao ridículo de uma criança com a bola parar no meio de um jogo e olhar para o banco de suplentes à espera de indicações do treinador? Quantos de nós não vimos um jovem praticante suspender uma ação para passar a bola a um certo companheiro de equipa porque o treinador assim o sugeriu? Infelizmente, é uma realidade evidente: a maioria dos treinadores de futebol, em geral, e na formação, em particular, abusa dos episódios de instrução verbal nos treinos e nos jogos, o que inadvertidamente condiciona o desenvolvimento da autonomia decisional do praticante, de forma mais contundente em idades infantojuvenis. Se aos aprendizes não for concedida a oportunidade de ler o jogo e atuar em função das múltiplas possibilidades existentes, estes não aprenderão a lidar com os problemas contextuais suscitados pelos adversários. Na minha perspetiva, é uma das lacunas mais graves do futebol de formação, potenciada pelos próprios treinadores.
Como na vida, há uma frequência/dose apropriada para tudo. Não sejamos radicais ao ponto de afirmar que o treinador não pode intervir no treino e durante a competição. Não, pode e deve, mas não em permanência, pelos motivos anteriormente invocados. A concretização de uma autoscopia pós-treino pode ser muito útil para o treinador, através da resposta reflexiva a duas simples questões: (i) Intervim muito na sessão/jogo? e (ii) Mesmo que inconscientemente, condicionei a leitura do jogo e a execução das ações das crianças ou dos jovens? O recurso a imagens de vídeo é uma ferramenta ainda mais poderosa. O treinador que analise as suas intervenções e retire conclusões objetivas e passíveis de aprimorar a sua conduta no terreno.
No futebol de rua, por exemplo, não há adultos, mais ou menos especializados, a intervir no jogo de crianças ou jovens. Aliás, esta é uma das principais valências do jogo informal e do designado “treino livre”, entretanto já adotado por alguns clubes de elite nas suas estruturas de planeamento semanal. Os miúdos organizam-se, jogam e aprendem; e não aprendem apenas sobre o jogo. É uma visão mais liberal do ensino/treino da modalidade e que pode ser um complemento valioso ao processo formativo mais convencional.
Enfim, não se pense que o “treinador-playstation” é o colega do outro escalão da nossa escola de futebol ou o treinador do clube A, B ou C. Nenhum de nós, por razões culturais, formativas e/ou emocionais, está imune a esta autêntica praga que assola o futebol de formação. A boa notícia é que o antídoto está mais próximo do que imaginamos. Para o obtermos bastará, em primeiro lugar, refletir sobre as nossas práticas pedagógicas e, seguidamente, deixar os miúdos jogar e praticar as situações de treino propostas, utilizando e aperfeiçoando as suas capacidades percetivas, cognitivas e motoras.
Mais que perfeita essa análise.